A música que faz mover também pode comover? Me deparei com a questão há não muito tempo e sinceramente acho que ela dá pano pra manga. Pensando mais no concreto: a música abertamente dançante, com batida marcada, de pista, extrovertida, fanfarrona e pra cima teria menor poder – se é que tem algum – de nos tocar, mexer também com o interno, fazer viajar, em suma, despertar sentimentos? Ou seria essa, então, uma virtude exclusiva ou prioritária do som dito sério, intimista, suave e contido? Bom, cada um que pense agora com sua própria alma e esqueleto e dê sua resposta, que será a certa. Adianto meu ponto dizendo que acredito, antes de qualquer coisa, na força de comoção da Música, sem adjetivos. Resolvo a questão por aí, no geral mesmo.
Mas este texto é sobre o sergipano Ferraro Trio, matéria-prima para a reflexão sugerida acima. Alerto que eles tratam de fazer música que bebe com sede em ritmos que movem. Além de vasta amizade, a corrente de 220 volts que passa entre Saulinho Ferreira, Rafael Jr. e Robson Souza se conecta a uma tomada rítmica forte. Vamos chamar de groove, o que se aplica a bases variadas como funk, rock, samba, soul. É música instrumental e muito intensa, pra valer. Tirando o caso de alguma baladinha, o pezinho em geral não se aguenta, a cabeça dispara e a mão também. Ouça por exemplo Ponta dos Mangues, Capitão Cook, Hamster, Pega o Doido e Retrobyte e tire suas dúvidas. Duvido que não viaje longe e se emocione. Se não der nada, procure ajuda urgente!
Mas a trinca também enfrenta temas de Simonal, James Brown, Hendrix, Jorge Benjor, Stevie Wonder e Michael Jackson. Ficou mais claro agora em que águas navegam, né? No entanto, enquadrar os Ferraro apenas aí seria impreciso, uma vez que transitam por outros territórios individual e coletivamente, com especial atenção ao Jazz. Acredito que tanto a sensibilidade que possuem quanto as soluções técnicas e harmônicas que mobilizam no trio tenham sido potencializadas pela forma jazzística de encarar e de tratar a música. O que obviamente não exclui toda uma riqueza de backgrounds que trazem, mas é colocada para funcionar em outras lógicas. Fique bem claro que não estamos falando aqui apenas de improvisação, solos e virtuosismo. Isso está no Ferraro, mas bem mais discretamente – às vezes num detalhezinho – do que costuma ser o caso em power trios, formação que com frequência cede ao narcisismo, a solos mirabolantes que buscam aplausos e gritos. No Ferraro – vai lá um chavão – menos é mais e a economia tem dado certo. E não jogam pra torcida, como se diz no futebol.
Para quem não sabe, na música a formação em trio é altamente perigosa, exigente e, muitas vezes, ingrata. Explico. Havendo apenas três cabras, a garantia dos elementos fundamentais da música – ritmo, melodia e harmonia – pesa toneladas e margem para erros não há. Quando um escorrega, cai todo mundo. E verdade seja dita, para bateria e contrabaixo a navalha é ainda mais afiada, que me perdoem os guitarristas. Mencionei ingratidão porque nem sempre ouvidos menos treinados dão valor ao trabalho-chave e aparentemente menos exuberante de bateristas e contrabaixistas. Ocorre que no Ferraro, Robson e Rafa aliam seriedade e competência técnica e garantem uma cozinha não apenas firme, limpa e segura, mas também muito suingada, temperada e saborosa. Agora sim, o guitarrista. Em primeiro lugar, Saulinho soma. Joga pro time reforçando a base, mas sem retranca. Sua força monstruosa está na polivalência. Parece que tem mais de duas mãos e consegue unir e reunir todos os elementos da música com muita sensibilidade. Realça, dessa forma, o poder do trio e facilita para que dê seu devido sotaque a cada tema que executa. Bem, o virtuosismo de Saulito na guitarra não passará despercebido, podem acreditar.
É preciso ainda registrar a evolução do Ferraro nos cerca de seis anos de trabalho. Ao lado do crescimento técnico, a bagagem geral também fermentou junto, auxiliada pela atuação em outros formatos e sobretudo pela inquietação de todos e de cada um. A gravação de dois EPs e de um DVD, a exposição em palcos maiores ou menores pelo Brasil (Belo Horizonte, Fortaleza, Juazeiro do Norte, Sousa), o corpo-a-corpo com aulas, ensaios e pesquisas acadêmicas reconhecidas são parte dessa estradinha que o trio está abrindo ao mesmo tempo em que nela caminha. E parecem, como diz um uruguaio, amar la trama más que al desenlace!
Está claro e evidente que o Ferraro Trio ajudou decisivamente a colocar o patamar da música feita em Sergipe em outro nível. Ao mesmo tempo, tem servido de exemplo para músicos em formação (suas apresentações estão sempre lotadas de jovens que aspiram e tragam cada nota). E mais, tem prestado o ótimo serviço de mostrar para muita gente que há salvação e esperança na música atual. É para isso que nesse momento o trio está captando recursos para preparar um álbum e colocar mais adubo no jardim que vem plantando com a ajuda da produtora Dani Dutra. Em breve, mais música feita a mão, com cuidado artesanal.
Tudo isso com grande autenticidade e natural discrição. Discrição que revela alto respeito pelo ofício, compromisso com a arte e com as próprias convicções de Robson, Saulinho e Rafa, todos eles professores envolvidos até o último fio de cabelo com ética e estética na música (e na vida, eu diria, por conhecê-los como pessoas). E revela também bastante daquilo que são os três amigos. Gente muito gente, que se apresenta com enorme gosto, sinceridade e simpatia. Basta assisti-los em ação, ver os sorrisos de retribuição que soltam. E aquela simplicidade que cativa demais, como se convidassem cada um do público para um café com cuscuz depois do show.
* Texto publicado na Revista Cumbuca (n. 10, dez./2015).
Ernesto Seidl produziu e apresentou o programa Clube do Jazz da Aperipê FM de 2006 a 2013. É cientista político e vive em Florianópolis/SC.
Mais sobre Ferraro Trio neste blog:
FERRARO, OU A ARTE DO TRIO: MOSAICO DE SONS & IMAGENS
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